sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Voto e consciência no STF

Paulo Moreira Leite
 
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o Outro General da Casa"

 

Confesso que saí atordoado do STF, ontem. Não foi a vitória de Joaquim Barbosa que causou surpresa.

Ouvi um ministro, Luís Roberto Barroso, dizer que concordava com o revisor Ricardo Lewandovski, mas que iria votar com Joaquim Barbosa porque estava acabando de chegar ao STF. Não se sentia no direito de questionar a primeira fase do julgamento, quando ainda não fazia parte do tribunal. 
Se estivesse no STF desde o início, explicou Barroso, "muito provavelmente me inclinaria pela tese dele [Lewandowski]. Mudaria a situação não só desse réu, mas de muitos outros". O ministro afirmou ainda: "Fiz escolha difícil ao começar a participar deste julgamento. Foi a de que eu serviria melhor à Justiça e ao país se eu chegasse para não revirar um julgamento que consumira mais de 50 sessões deste plenário. Se o tribunal se dispusesse a reabrir o debate, participaria". 
 
Barroso é um ministro de cultura jurídica reconhecida. Demonstrou que é capaz de convicções firmes, a ponto de ter sido um dos advogados do direito de permanência de Cesare Battisti no país, num caso que abriu uma polêmica de alta temperatura, com repercussão internacional, inclusive. 
 
Até por esse motivo, sua intervenção no julgamento causou espanto. Como é que um ministro do STF pode achar que fez uma “escolha difícil?” 
 
Escolheu entre o que e o quê?
 
Comentando o caso, mestre Jânio de Freitas afirma, na Folha de hoje, que se Barroso concluiu que havia mesmo um erro no julgamento, deveria lutar para refazer os trabalhos. Janio explica, num parágrafo que vale a pena ler por inteiro: 
“Para aprimorar os julgamentos é que recebeu a cadeira ambicionada. Seu argumento adicional não foi melhor: ‘teríamos que reabrir o processo. E Deixar uma sentença, seja de condenação ou d’e absolvição, prevalecer apesar de lhe parecer errada, contanto que não se reabra o processo, é mesmo próprio de magistrado?”
 
Retomando. Quando foi sabatinado no Senado, responsável por sua indicação, Barroso disse que considerava o julgamento do mensalão “um ponto fora da curva do STF.” 
Queria dizer que as penas haviam sido muito duras e que o tribunal não havia atuado de acordo com a tradição, de Corte que não abre mão dos direitos e garantias do indivíduo frente ao Estado. 
 
Na primeira oportunidade, num julgamento que irá ter influencia sobre as instâncias inferiores do judiciário e terá consequências terríveis para cidadãos que podem ter sido vítimas de uma injustiça, Barroso alega que não iria “revirar um julgamento que consumira mais de 50 sessões deste plenário.” 
 
O voto decepcionou advogados e mestres do Direito que, confiando nos pontos de vista que Barroso defendeu publicamente ao longo de sua vida de jurista muito respeitado, imaginavam que um ministro com sua liderança e sua independência seria capaz de enfrentar um debate sabidamente difícil. As vozes minoritárias do STF são chamadas de “mensaleiras”, hostilizadas nas ruas e alvo de permanente vigilância por parte dos meios de comunicação. 
 
Se o ministro tivesse votado com Lewandovski, como admitiu que seria sua provável inclinação, a minoria teria obtido 4 votos, e não 3, o que daria um novo quadro ao julgamento. Mesmo vencidos, os réus teriam oportunidade de entrar com novos recursos. O STF teria enviado um sinal político diferente em relação a 2012.  
 
Data vênia, eu acho preocupante. Barroso não disse que discordava dos ministros que queriam mudar a situação de determinados réus, opinião que seria válida como qualquer outra.
 
Barroso sugeriu que não se sentia à vontade para um gesto dessa natureza, como se a condição de novato fosse um entrave à plenitude de sua atuação. Admitiu, em resumo, que não votaria conforme sua consciência de jurista. 
 
Talvez eu esteja fazendo o papel de idealista, inspirado pelo frescor absoluto de um grupo de adolescentes de São Paulo que visitou o STF na tarde ontem, com sua curiosidade, nenhum medo de fazer perguntas e a vontade pura de viver num mundo que separa o certo do errado. 
 
Mas eu acho – talvez em minha ingenuidade -- que um ministro tem o dever de votar de acordo com seu pensamento, por mais exótico que pareça, por mais incômodo que possa causar aos colegas. 
 
Se Joaquim Barbosa fez o que fez na semana passada e nem se sentiu obrigado a pedir desculpas a Ricardo Lewandovski na retomada dos trabalhos, limitando-se a afirmar que possui uma visão “bastante peculiar da presidência do STF,” eu acho bom recordar que estamos numa realidade dura e áspera, em que é urgente saber onde se pisa e aonde se quer chegar. Ninguém está no STF a passeio. 
 
Advogados presentes no tribunal me explicaram que a posição de Barroso tem mais pontos de sustentação do que um ignorante como eu poderia perceber. É muito possível e muito provável. Mas foi o ministro que fez o contrário do que disse que pensava. 
 
Para falar com clareza: ninguém planejava, ontem, refilmar O Homem que Matou o Facínora na Praça dos Três Poderes. 
 
Não precisamos de heróis. Precisamos de juízes. 
 
E já que estamos no STF, precisamos de juízes soberanos. 
 
Estranhei quando o decano Celso de Mello disse, para justificar um voto que acompanhava Joaquim Barbosa, que o STF era obrigado a deliberar exclusivamente sobre aquilo que fora denunciado pelo ministério público e que, por essa razão, não se poderia aceitar alegações e provas que haviam sido descartadas pelo promotor geral Roberto Gurgel. 
 
Achei estranho porque, meses atrás, extrapolando abertamente os próprios poderes, o Supremo popularizou a visão errada de que “a Constituição é aquilo que o STF diz que ela é.” 
 
Chegou a ponto de votar contra o artigo 55 da carta de 1988, que estipula claramente que só o Congresso tem poderes para definir a perda de mandato de senadores e deputados. 
 
É evidente que não é obrigado a submeter-se ao procurador geral da República, certo? 
 
Num tribunal que aprovou o regime de cotas, definiu reservas indígenas e tomou tantas decisões favoráveis aos chamados direitos de minorias, essa alegação é estranha demais, formal demais. 
 
Mas é engraçado registrar que, quando se queria cassar mandatos, valia atropelar um artigo da Constituição. 
 
Quando não se quer rever uma condenação, alega-se que Roberto Gurgel tem a última palavra sobre os trabalhos em curso. 
 
Este aspecto tem particular importância aqui. Submetidos a um julgamento em fase única, sem direito a um segundo exame de suas penas, os condenados do mensalão foram colocados, contra toda jurisprudência – inclusive do mensalão mineiro, do mensalão do DEM de Brasília – num foro privilegiado que se mostrou uma armadilha a seus direitos. 
 
Por decisão da acusação, alguns réus foram investigados em segredo e serão julgados em separado, pela justiça comum -- se é que isso vai acontecer, um dia. Documentos que poderiam auxiliar a defesa não foram oferecidos a seus advogados, durante o processo. Divulgado neste espaço em maio de 2012, o inquérito do delegado Luiz Flavio Zampronha, da Polícia Federal, deixa claro que não se encontrou o menor indício daquele esquema que Roberto Jefferson definiu como mensalão. Ele também concluiu que os empréstimos do Banco Rural, apontados como fraude, envolviam negociações efetivas entre o PT e a instituição. 
 
Diretores do Banco do Brasil com responsabilidade até maior do que Henrique Pizzolatto na definição de recursos que, segundo a acusação, estão na origem do mensalão, se encontram nessa situação, realmente privilegiada. Empresários que foram ouvidos no processo e que admitiram ter participação com $$$ grosso no esquema de Delúbio Soares e Marcos Valério, em contratos superiores a tudo o que se disse que saiu do Banco do Brasil, não se sentaram no banco dos réus. 
 
O julgamento ocorre num ambiente político, alimentado por sucessivas demonstrações de força e é assim que cada palavra, cada “mas”, cada “talvez”, cada “possível”, se explica. 
 
O quadro foi bem desenhado pelos repórteres Felipe Recondo e Debora Bergamasco, dias antes da retomada do julgamento. Falando da condenação aprovada em clima de redenção nacional no final de 2012 e da reflexão estimulada a partir dos embargos e recursos, os dois escreveram no Estado de S. Paulo:
 
“Há ministros que se mostram ‘arrependidos de seus votos’ por admitirem que algumas falhas apontadas pelos advogados de defesa fazem sentido. O problema (...) é que esses mesmos ministros não veem nenhuma brecha para um recuo neste momento. O dilema entre os que acham que foram duros demais nas sentenças é encontrar um meio termo entre rever parte do voto sem correr o risco de sofrer desgaste com a opinião pública.”
 
Este é o ponto. 
 
E aqui chegamos ao debate de ontem. Estava em pauta o destino do Bispo Rodrigues, ex-deputado pelo PL. Ele foi condenado porque solicitou benefício em dinheiro para fazer parte da base do PT. Também se considerou que, em troca de dinheiro, votou com o governo em duas reformas importantes de 2003 e assim por diante. Ao fazer a denúncia que colocou o bispo no banco dos réus, o procurador-geral disse que era possível provar que ele havia negociado apoio, organizado a votação da bancada e até recebido uma primeira parcela da remuneração, R$ 250.000. Também se podia provar que ele havia recebido uma segunda parcela, de R$ 150.000, paga em 2003. Em suas alegações finais contra Rodrigues, o Ministério Público mudou a acusação. Alegou que não possuía a maioria das provas anunciadas anteriormente. Disse que só poderia provar o recebimento da última parcela, de R$ 150.000. Não é um detalhe. Condenado pelas provas anteriores, Rodrigues seria enquadrado na lei anterior de corrupção, que prevê penas inferiores à lei atual. Se fosse condenado exclusivamente pelos R$ 150.000, estaria condenado pela nova lei, que dobrou a pena mínima e elevou também outras condenações. 
 
Alinhado com Gurgel, Joaquim Barbosa defendeu a pena mais dura, concordando com as alegações do procurador-geral. Lewandovski, que na fase inicial havia votado com a acusação, mudou de opinião e explicou por quê. Afirmou que os autos mostravam o que nem todos haviam percebido: o Ministério Público manipulou provas, escondendo aquelas que não convinham, mostrando aquelas que interessavam. Lewandovski também lembrou que a situação poderia ser comparada à do cidadão que suborna um guarda de trânsito ao ser apanhado pela Lei Seca. Mesmo que tenha dividido o pagamento da propina em duas prestações, estamos falando de um crime só. 
 
Numa intervenção bem meditada, Marco Aurélio Melo lembrou que a acusação contra o bispo Rodrigues formava um conjunto, que incluía desde o acordo de campanha do PL – partido do vice-presidente José Alencar –, passando por duas votações no Congresso e o pagamento em dinheiro. Para sublinhar o absurdo de ignorar as outras provas e condenar o ex-deputado pelo pagamento da última prestação, Marco Aurélio fez a pergunta que não quer calar: “se não tivesse havido o último pagamento, não teria havido corrupção?”
 
Ninguém estava discutindo a absolvição do ex-deputado Rodrigues. Não se pretendia dizer que não era culpado. O que seria era uma pena justa, de acordo com os autos e as leis em vigor na época em que os fatos ocorreram. 
 
A retomada dos trabalhos foi acompanhada pelas conversas de que o julgamento está se prolongando demais. Eu acho que tempo é um critério da política, que tem seus calendários eleitorais, e também da TV, onde novelas duram entre três ou quatro meses, conforme o Ibope. Considerando que 37 réus estavam sob julgamento, e que muitos deles foram condenados a penas duríssimas, que não se aplicam no Brasil nem em casos de tortura, sequestro seguido de morte, parricídio ou infanticídio, temos menos de 2 sessões por cabeça. É até pouco do ponto de vista da preservação dos direitos individuais, vamos combinar.
 
 
Isto É

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