terça-feira, 20 de maio de 2014

Quanto de barbárie existe ainda dentro de nós


 

Leonardo Boff

Perversidades sempre existiram na humanidade, mas hoje, com a proliferação dos meios de comunicação, algumas ganham relevância  e suscitam especial indignação. O caso mais clamoroso, nos inícios de maio de 2014, foi o linchamento da inocente Fabiane Maria de Jesus, em Guarujá, no litoral paulista. Confundida com uma sequestradora de crianças para efeito de magia negra, foi literalmente estraçalhada e linchada por uma turba de indignados.

Tal fato constitui um desafio para a compreensão, pois vivemos em sociedades ditas civilizadas, e dentro delas ocorrem práticas que nos remetem aos tempos de barbárie, quando ainda não havia contrato social nem regras coletivas para garantir uma convivência minimamente humana.


Há uma tradição teórica que poderia dilucidar tal fato. Em 1895 Gustave Le Bon escreveu, quiçá por primeiro, um livro sobre a “Psicologia das massas”. Sua tese é que uma multidão, dominada pelo inconsciente, pode  formar uma “alma coletiva” e passa a praticar atos  perversos que, a “alma individual”, normalmente, jamais praticaria. 

O norte-americano H. L. Melcken, ainda em 1918,  escreveu A turba, um estudo judicioso sobre o fato e mostra a identificação do grupo com um lider violento ou com uma ideologia de exclusão que ganha então um corpo próprio e, sem controle, deixa irromper o bárbaro que ainda se aninha no ser humano. 

Freud, em 1921, retomou a questão com o seu Psicologia das massas e a análise do eu. Os impulsos de morte, subsistentes no ser humano, dadas certas situações coletivas, diz ele, escapam ao controle do superego (consciência, regras sociais) e aproveitam o espaço liberado para se manifestar em sua virulência. O indivíduo se sente amparado e animado pela multidão para dar vazão à violência escondida dentro dele.


A análise mais instigante foi feita pela filósofa Hannah Arendt. Em 1961 acompanhou, em Jerusalém, todo o processo de julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann por crimes contra  humanidade. Arendt escreveu em 1963 um livro que irritou a muitos: Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalização do mal. Ela cunhou a expressão “a banalização do mal”. Mostrou como a identificação com a figura do Führer e com as ordens dadas de cima podem levar às piores barbaridades com a consciência mais tranquila do mundo. Mas não só neles se expressa a barbárie. Também naqueles  judeus que extravasavam seu ódio a Eichmann, exigindo os piores castigos, como expressão também de um mal interno.


Que concluímos disso tudo?  Que um conceito realista do ser humano deve incluir também sua desumanidade. Somos sapientes e dementes. Em outras palavras: a barbárie, o crime, o assassinato pertencem ao âmbito do humano. Demos um dia, há milhares de anos, o salto da animalidade para a humanidade, do inconsciente para o consciente, do impulso destrutivo para  a civilização. 

Mas esse salto ainda não se completou totalmente. Carregamos dentro de nós, latente mas sempre atuante, o impulso de morte. A religião, a moral, a educação, o trabalho civilizatório foram os meios que desenvolvemos para pôr sob controle esses demônios que nos habitam. Mas essas instâncias não detém aquela força que possa submeter tais impulsos às regras de uma civilização que procura resolver os problemas humanos com  acordos e não com o recurso da violência. 



Cumpre reconhecer que vigora em nós ainda muita barbárie. Não diria animalidade, pois os animais se regem por impulsos instintivos de preservação da vida e da espécie. Em nós esses impulsos perduram, mas temos condições de conscientizá-los, canalizá-los para tarefas dignas, através de sublimações não destrutivas, como Freud e, recentemente, o filósofo René Girard, com seu “desejo mimético” positivo, tanto insistiram. Mas ambos se dão conta do caráter misterioso e desafiante da persistência desse lado sombrio (pulsão de morte em dialética com a pulsão de vida), que dramatiza a condição humana, e podem levar a fatos irracionais e criminosos como o linchamento de uma pessoa inocente.



Todos pensamos nos linchadores. Mas quais seriam os sentimentos de Fabiane Maria de Jesus, sabendo-se inocente e sendo vítima da sanha da multidão que faz “justiça” com suas próprias mãos? A questão principal não é o Estado ausente e fraco ou o sentimento de impunidade. Tudo isso conta. Mas não esclarece o fato da barbaridade. Ela está em nós. E a toda hora, no mundo, ela ressurge com expressões inomináveis de violência, algumas reveladas pela Comissão da Verdade, que analisa as torturas e as abominações praticadas por tranquilos agentes do Estado de terror, implantado no Brasil.


O ser humano é uma equação ainda não resolvida: cloaca de perversidade, para usar uma expressão de Pascal,  e ao mesmo tempo a irradiação da bondade de uma Irmã Dulce, na Bahia, que aliviava os padecimentos dos mais miseráveis. Ambas realidades cabem dentro desse ser misterioso — o ser humano — que sem deixar de ser humano ainda pode ser desumano. Temos que completar ainda o salto da barbárie para a plena humanidade. A situação violenta do mundo atual, também contra a Mãe Terra, nos deixa apreensivos  sobre a possibilidade de um desfecho feliz deste salto. Só mesmo um Deus nos poderá humanizar. Ele tentou, mas acabou na cruz. Um dos significados da ressurreição é nos dar a esperança que ainda é possível.  Mas para isso precisamos crer e esperar.


Jornal do Brasil

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