terça-feira, 10 de abril de 2018

Ciro joga abaixo da dignidade contra Lula



10 de Abril de 2018

Por Paulo Moreira Leite


O silêncio de Ciro Gomes diante da prisão de Lula constitui o mais lamentável episódio político-moral de 2018.

Depois de aparecer na campanha como o sonho secreto de consumo de uma parcela de eleitores do PT que poderiam buscar uma segunda opção no caso de bloqueio definitivo da candidatura de Lula, Ciro tornou-se sinônimo de compreensível mal-estar e indignação.

No momento em que o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC reunia uma massa de militantes e eleitores fiéis para proteger a principal liderança popular de nossa história, num comportamento corajoso que ainda não recebeu a devida atenção de nossos estudiosos, Ciro manteve-se em silêncio comprometedor com os movimentos finais da Lava jato destinados a trucidar, covardemente, o candidato preferido nas pesquisas eleitorais.

A explicação é que participava de um evento em Harvard, na Costa Leste dos Estados Unidos. O problema é que a distância não impediria que gravasse um vídeo em solidariedade a Lula, por exemplo.

Na segunda-feira, Ciro esteve em Porto Alegre para participar de um evento com candidatos -- Marina Silva, Geraldo Alckmin e vários figurantes -- irmanados no esforço para dar a impressão de que a campanha segue normalmente, como as outras sete eleições ocorridas no país desde o restabelecimento das eleições diretas, em 1989.

Enquanto Lula entrava no terceiro dia de isolamento e silêncio compulsório no aposento de 15 metros quadrados na Polícia Federal, Ciro fez questão de registrar um ponto de vista: discorda da classificação "preso político" para definir a condição de Lula, termo clássico das lutas democráticas para distinguir processos jurídicos daqueles que tem fundamento em interesse político. "Você pode considerar injusta a condenação do Lula mas daí a extrapolar por esse caminho parece estranho", disse aos jornalistas.

Não é um confronto de firulas. No Brasil de hoje, a noção de "preso político" envolve o reconhecimento do caráter essencialmente injusto e enviesado de uma condenação com base numa acusação sem crime demonstrado nem provas consistentes. 

Ao rejeitar a Lula a caracterização de "preso político", Ciro nega-se a reconhecer um direito fundamental do Estado Democrático de Direito -- a presunção da inocência, a garantia que está no centro do debate que o país enfrenta. Conforme seu ponto de vista, a liberdade de Lula pode não ser necessária -- muito menos urgente.

Sabemos que momentos de virada política inspiram cenas estranhas. Produzem armadilhas que despertam egoísmos sem limites, destroem reputações iluminadas, surpreendem personagens tarimbados de um sistema político e comprometem biografias para sempre.

Convencido de que poderia até a candidatura presidencial no pleito marcado para 1965, em abril de 1964 Juscelino Kubitscheck abandonou Jango -- seu vice entre 1955 e 1960 -- e, no calor da hora, ajudou na escolha do Marechal Castello Branco como primeiro presidente do ciclo militar. Chegou a pedir a aliados de Minas Gerais, como Tancredo Neves, para votar em Castello. Dois meses depois, JK teve os direitos políticos cassados por dez anos e, para livrar-se de um IPM sob medida transformar sua existência num inferno, mudou-se para a Europa e só então engajou-se na oposição ao novo regime.

A biografia de políticos grandes, médios e ruins está recheada de lances inesperados que, quebrando as pernas de um concorrente, permitiram sua consolidação em posição de maior destaque e relevo. José Sarney não teria sido presidente não fosse a diverticulite de Tancredo Neves. Nem Itamar Franco poderia ter ocupado o Planalto se Fernando Collor não tivesse sido forçado a renunciar em função depois da denúncia do Fiat Elba. 

Isso acontece porque a disputa pelo poder de Estado -- estamos falando de uma das dez maiores economias do mundo -- é um exercício frio, de cálculos largos e escrúpulos estreitos, em função de inúmeros interesses que podem ser atingidos e sensibilidades que podem ser agradadas a qualquer momento.

Neste ambiente, é fato que a lealdade e a sinceridade costumam ter um valor flexível. Mas a compostura -- e mesmo a hipocrisia -- fazem parte obrigatória do jogo.

A partir de 2003, Ciro Gomes consolidou-se como aliado de Lula no primeiro dos governos petistas. Ajudou a colocar de pé o projeto da Transposição do São Francisco, merecendo partilhar os louros com o próprio Lula e mais tarde com Dilma, depois que empregou sua valentia verbal em debates com artistas de prestigio e religiosos, especialmente sensibilizados com a preservação ambiental mas sem respostas urgentes para a fome, a sede e a higiene dos milhões de nordestinos as voltas com a falta de uma riqueza natural essencial como a água. 

Sob o ataque feroz da AP 470, no mesmo período Ciro demonstrou uma lealdade exemplar. Comparecia pontualmente a encontros que tinham início às 6 da manhã no Planalto para responder às denuncias e maquinações do dia. Só não permaneceu no segundo mandato porque não quis. Lula insistiu para que ficasse mas recusou. Estava, convencido, conforme me disse um dirigente do Partido dos Trabalhadores na época, que "o segundo mandato vai ser pior do que o primeiro".

Erros de análise e avaliação fazem parte da rotina da vida política, o que inclui o futuro de Lula.

A situação do ex-presidente é dificílima. Se ninguém pode assegurar até quando ele será mantido numa cela solitária, todo mundo sabe muito bem o que deve fazer para enfrentar uma situação que o próprio Ciro admite como "injusta".

Mais do que nunca a situação do país está nos olhos e ouvidos de quem acompanha o que acontece no país, uma multidão que ainda não deu sua última palavra. 

Neste ambiente, a voracidade eleitoral de Ciro Gomes assume a feição de uma ofensiva abaixo da linha da dignidade. Deixa claro que atrelou sua opção de vitória à destruição de Lula operada pela Lava Jato -- o que pode ser fatal para quem, calculadamente, é obrigado procurar suas chances no espólio do mais popular presidente de nossa história.



Brasil 247

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